domingo, 29 de maio de 2011

merthiolate


não, as minhas feridas não cicatrizaram, muito pelo contrário, com o frio elas gritam loucas e ensangüentadas por amor. velho clichê de que o tempo tudo cura (quanto tempo mesmo vai levar?) 

lembranças de infância, de frio, de correr de meia-calça, cair rasgar a meia, esfolar o joelho. minha mãe (terrível costureira) remendava a meia-calça. dois dias depois, novo tombo, novo rasgo, nova cicatriz (no joelho, na meia). ah pequena travessa, não aprendes jamais a lição. continuas a atravessar terrenos escorregadios, a correr e a cair. agora, além do joelho ferido (culpa do porre excessivo), tens aí ferido a metáfora dos amantes – pobre coração. minha mãe há tempos deixou de remendar minhas meias. jamais se disporá a remendar joelhos, fígados e outras partes corpóreas que por aí se acidentarem.

tudo bem, sem problemas, qualquer dia desses ao levar outro tombo, verei que tropeçei na razão. menina moleca de meia-calça, troca tudo por um bom juízo e a única meia-calça das quais se terá notícia figurarão delicadamente na cinta-liga do quarto escuro. sem feridas, remendos e cicatrizes.


a morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras.
José Saramago

Nenhum comentário:

Postar um comentário